CAPÍTULO 1
O
Anjo de Trada.
Um som abafado do trote veloz e determinado de Uster cortava o
silêncio de Monfar. As folhas secas estalavam e esvoaçavam sob as poderosas
patas do belo cavalo que cruzava as temidas trilhas da floresta como
o vento, conduzindo seu senhor rumo às terras do sul. O jovem Tagart deveria
entregar uma importante mensagem em Serena, a cidade alva, e
esperava diminuir o tempo de viagem em dois dias, atalhando pela floresta. A
Terra das Vozes, como chamavam a velha Monfar, era muito antiga e perigosa,
talvez o segundo local mais perigoso de todo o reino de Grênazar, mas o
mensageiro precisava chegar rápido, o mais rápido possível, mesmo que precisasse
mergulhar na densa neblina da velha floresta e arriscar descobrir seus
segredos.
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E como o rapaz previu, quando as
estrelas já brilhavam claras no céu limpo na noite do mesmo dia em que partira,
Uster deixou para trás as últimas árvores de Monfar e Tagart pôde ver as
poucas casas de Taruli, a primeira aldeia da planície de Trada, na borda
sul da Terra das Vozes, ainda iluminadas pelo crepúsculo.
O pequeno vilarejo de Taruli era domínio dos Brenvos, o clã dos homens que
dominavam toda a região central, de leste a oeste, do reino de Grênazar. Porém,
Targart ainda não tinha terminado sua viagem. De Taruli ele deveria seguir até
a cidade de Serena, onde vivia Ecárion, o Senhor de todos os Brenvos. Então,
sem muito descanso, o mensageiro continuou seu caminho e cavalgou por mais
duas horas até a cidade branca dos Brenvos.
Tagart era um Legrado, como eram chamados os homens que viviam ao norte de
Monfar, a leste da Cordilheira Cortante. Ele tinha ordens de entregar uma
mensagem para Ecárion em pessoa, e para mais ninguém. No entanto não fazia
ideia de como eram os costumes dos Brenvos. Os humildes Senhores
Legrados apenas comentavam que seus vizinhos mais próximos ao sul tinham
hábitos muito elegantes, grandes conhecimentos místicos e que eram os
melhores cavaleiros de todos os quatro reinos. E aquilo era tudo que Tagart
conhecia dos Brenvos.
Tomando a estrada sudeste, Uster continuou, incansável, levando seu
senhor até Serena. E antes de entrar na cidade Tagart parou por
alguns minutos para apreciar um grande castelo, exatamente no centro
da cidade, de pedras brancas que refletiam o luar em suas paredes,
muros e torres. Era a morada dos Brenvos, a construção mais antiga de todo o
reino. O castelo parecia uma pérola em meio ao resto da cidade que
se escondia sob as primeiras sombras da noite. Após seu pequeno
momento de contemplação, Tagart, então, cruzou as ruas da cidade e logo chegou
aos portões do castelo, onde foi barrado por seis guardas.
- Boa noite senhores - disse o jovem legrado,
enquanto se aproximava.
- Boa noite meu jovem. O que deseja por aqui?
Em que podemos ajudar? - disse um dos guardas, que vestia uma cota de
armas preta com contornos dourados e, bordado no peito, a figura de
um escudo com a cabeça de um leão no centro. Tagart imaginou que o guarda deveria
ser o superior entre os soldados ali, devido a sua vestimenta distinta.
- Desejo uma audiência com seu senhor. Eu me
chamo Tagart, venho de Chopar e trago uma mensagem urgente em nome de
Milarco, o Sábio. Tenho ordens de entregá-la apenas para Ecárion, e o mais
rápido possível – respondeu o mensageiro, tentando aparentar autoridade e
segurança.
O guarda pareceu confuso, cochichou alguma coisa com seus companheiros
e disse em seguida, dirigindo-se a Tagart: - Fique aqui! Verei se nosso
senhor vai recebê-lo. Ele está à espera de mensagens de Milarco, mas não antes
de pelo menos dois dias - comentou o soldado.
Tagart, na companhia dos outros guardas, perguntou onde ficavam os Campos de
Ouro das Margens de Lim. As planícies do território brenvos eram famosas por
sua beleza, e Tagart prometeu a si mesmo, quando aceitou a missão de Milarco,
que aproveitaria sua viagem para conhecer a Planície de Trada, que era o
coração do território dos Brenvos. Muitos dos sábios de Arla, e viajantes
do estremo sul do reino, que hora passavam por Chopar, conheciam as
planícies ao sul de Monfar e contavam histórias fabulosas sobre as
muitas maravilhas daquele lugar. As histórias sempre despertaram a
curiosidade de Tagart, que naquele momento teria uma chance de conhecer Trada.
- Ecárion vai atendê-lo - disse o soldado ao retornar. - Siga-me, vou
levá-lo até a sala de reuniões. Ele está reunido com nossos conselheiros. - E
assim o mensageiro foi conduzido pelo interior do castelo. Já no salão
de entrada, Tagart deslumbrou-se com a beleza do lugar. A sala era repleta de
quadros espalhados por todas paredes, pinturas de paisagens, batalhas,
monstros míticos e famílias importantes. Havia estátuas de mármore e ouro
espalhadas pelos cantos e junto aos marcos das portas, e incontáveis vasos
de flores adornados por pedras preciosas sobre pedestais, mesas e balcões por
toda a parte, tudo iluminado por centenas de velas e tochas cuidadosamente
acomodadas. O piso era colorido em tons de vermelho, marrom, laranja e
caramelo, dispostos em intrincadas figuras geométricas que pareciam ondular e
elevar-se do chão. As paredes eram todas brancas, como no exterior, e
refletiam as luzes amareladas das velas e tochas, dando ao
lugar um brilho acolhedor. Tagart já ouvira falar da riqueza dos
Brenvos, mas nunca imaginou que a verdade seria mais magnífica que sua
imaginação.
Depois de passar pelo salão de entrada o jovem foi levado até o segundo andar
subindo uma imensa escada com o corrimão trabalhado em ouro e prata, imitando
as folhas e galhos de videiras. Em seguida o guarda tomou um corredor à
esquerda e eles chegaram a uma grande porta dupla entre aberta. Ao entrar
e ser anunciado pelo soldado Tagart viu vários homens sentados ao
longo uma grande mesa em frente a uma lareira. A sala, apesar de ampla
e alta, parecia pequena para acomodar aquela mesa tão grande, e estava
preenchida pelo cheiro forte de fumaça e vinho. Durante o anúncio que o guarda
fez, - Diante dos senhores trago Tagart, mensageiro dos Legrados, que traz
notícias em nome de Milarco, o Sábio - os homens ali presentes discutiam
ferozmente, e falavam todos ao mesmo tempo, parecendo não se importar com o soldado
ou com Tagart. Após ser pronunciado o nome de Milarco, no entanto, fez-se um silencio
sepulcral e então um sujeito alto e forte, com cerca de cinquenta anos, com
cabelos claros, barba bem aparada e olhos negros que brilhavam sob grossas
sobrancelhas grisalhas, levantou-se dizendo: - Eu sou Ecárion, Senhor
dos Brenvos e governante de Serena. Então... Que notícias traz de Chopar, jovem
mensageiro?
- Bem senhor, meu nome é Tagart e trago esta
mensagem em nome de Milarco - enunciou o rapaz enquanto retirava
do manto um rolo de pergaminho e o estendia ao alcance de Ecárion.
- Muito obrigado rapaz - disse o homem,
dirigindo-se de volta ao seu lugar no centro da grande mesa. - Eu e
meus conselheiros analisaremos as informações e enviaremos uma
resposta a Milarco logo pela manhã. Vá descansar agora. Rácaro, providencie
acomodações para o jovem legrado.
Tagart já era levado pelo guarda quando Ecárion virou-se e disse: - Antes
de ir, me diga, quando você partiu de Chopar?
- Bem senhor, foi hoje cedo, antes de clarear
o dia - respondeu o mensageiro.
- Mas isto é impossível. Levam três dias,
dois para o melhor cavalo e o melhor cavaleiro que conheço, para chegar até
aqui. Mesmo que atravessasse a floresta levaria pelo menos um dia e
meio - disse Ecárion, intrigado.
- Bem meu senhor, - proferiu Tagart com
cautela - realmente eu cruzei a floresta e tenho o melhor cavalo, Uster é
muito veloz e parece não se importar com as vozes da floresta. Só não
posso oferecer garantia quanto a ser um bom cavaleiro.
Naquele
momento os demais homens na sala, que acompanhavam em silêncio o diálogo,
levantaram e aproximaram-se de Tagart e Ecárion, perguntado, quase em uníssono:
- Mas e os espíritos? E os espíritos verdes?
-
Eu já ouvi muitas histórias sobre eles, mas nunca vi nenhum - afirmou Tagart, tentando
esconder certa malícia no olhar. Ele imaginava homens adultos do povo dos Brenvos,
e que deveriam ser os conselheiros de Ecárion, não acreditassem realmente em lendas
antigas sobre Monfar, tampouco mitos usados para assustar crianças malcriadas.
- Não seja tolo rapaz! - Exclamou um dos homens. – Se houvesse visto estaria
morto, não aqui, entregando mensagens.
- A única forma de entrar na terra das vozes é com uma montaria muito especial
- afirmou outro dos conselheiros. - Diga jovem, seu cavalo possui
algum tipo de marca, algum sinal em sua pelagem?
Naquele momento Ecárion interrompeu a conversa falando: - Chega de histórias de
ninar. Temos muito trabalho seus velhos senis. Deixem o rapaz descansar e
tratemos de assuntos mais sérios do que sombras verdes e vozes de árvores
sussurrando durante as noites do norte.
- Eu gostaria senhor, se permitir, de caminhar um pouco pela planície de
Trada, antes de me recolher - disse Tagart. - Há muito tempo
sonho em conhecer as terras de seu povo.
-
É verdade?! - perguntou Ecárion. - Então tem minha permissão para
andar nas proximidades do castelo. E se quiser mesmo conhecer a planície, peça
a Rácaro que leve você até o portão sul. Ele leva até um pequeno túnel
que passa sob toda a cidade e conduz a um córrego muito
sossegado fora dos limites da cidade.
- Obrigado senhor - afirmou Tagart enquanto se retirava.
Rácaro e o mensageiro deixaram o castelo e dirigiram-se ao portão sul. A lua
cheia derramava sobre o pátio do castelo uma luz clara como a de um dia
nublado, e não foi difícil encontrar o túnel que Ecárion mencionara, na
entrada do qual o guarda o deixou. Por pelo menos meia hora o mensageiro
se esgueirou por uma passagem estreita de teto baixo, cheia de teias de aranha
e fedendo a mofo, para enfim chegar a um campo aberto, bastante afastado
das últimas casas da cidade, coberto por uma vegetação baixa que
parecia saída de um sonho fantasmagórico graças ao tom prateado da luz da
lua sobre a grama verde. Alguns metros a frente da saída do túnel, corria
um riacho estreito de vagarosa correnteza, que o brilho da lua na água fazia parecer um
longo colar de diamantes, deslizando pela planície. Tagart espantou-se com a
beleza capturada por seus olhos. As planícies de Trada eram tão belas quanto
ele imaginara. Aquele vasto campo verde acinzentado parecia algo mágico saído
dos contos e lendas antigas. O ar fresco soprando uma brisa suave encheu os
pulmões do mensageiro com um tipo de encanto, quase como se tivesse dormido por
toda uma noite, fazendo seu corpo parecer leve e descansado. E o barulho calmo
da água correndo no riacho tocava uma melodia divina.
Tagart se aproximou do riacho e notou que junto à margem, rodeada de
pequenas flores amarelas, repousava uma grande pedra escura. Ele recostou-se
para descansar numa face lisa da rocha e durante alguns minutos o
mensageiro apreciou o céu estrelado e deixou de pensar na guerra que
ocorria em sua cidade. Ele poderia ficar ali, descansando, para sempre, sem
pensar em batalhas, mortes e perversidades. Porém, de repente, a
tranquilidade que ele experimentava desapareceu. Alguns metros a seu lado, sobre
o riacho, Tagart viu um pequeno brilho surgir no
ar, como se uma fenda se abrisse no manto escuro da noite,
deixando passar a luz de um dia persistente. O mensageiro ficou tão surpreso e
assustado que não conseguiu mover um dedo sequer. Então, do interior daquele
brilho, mais intenso que a luz da lua, Tagart vislumbrou a silhueta
de uma mulher que em seguida, lentamente, tomou forma e saiu do interior da
luz.
- Não tenha medo Tagart – disse a
mulher, com a voz mais bela e doce que o jovem já ouvira em toda sua
vida.
- Eu não posso acreditar! - exclamou o
mensageiro. - Você é o anjo de Trada!? A senhora da luz!? A senhora de
Trada e de todas as planícies!? Nem mesmo em meu sonho mais grandioso imaginei
que você seria tão bela. - E naquele momento o jovem curvou-se diante da
mulher, fazendo uma longa e cuidadosa reverência.
A deusa da luz tinha a aparência de uma mulher jovem, usava um vestido leve de
seda branca, com alças estreitas em torno do pescoço e com a saia na altura dos
joelhos. Em sua cabeça descansava uma tiara de flores do campo, com o símbolo
da luz entalhado em madeira em sua fronte e seus cabelos pendiam de sua testa
em cachos dourados como o mais puro ouro. De suas costas saiam longas asas brancas
de plumas, delicadas como pétalas de rosa, e uma longa trança prendia seus
cabelos compridos que iam até sua cintura. Seus delicados pés pisavam a relva,
descalços, e onde tocavam o chão surgiam pequeninas flores coloridas.
- Sim Tagard. Eu sou a Senhora de
Trada - respondeu ela. - Lara é o meu nome. Eu sou a Deusa da luz e das
planícies, filha de Valúnia, a quem os Brenvos chamam de anjo em suas
histórias.
- Obrigado
minha senhora. É a maior de todas as dádivas ter sua presença diante de mim em
seu santuário. Nunca poderia imaginar que minha visita às planícies de Trada seria
abençoada com a visão da mais bela das deusas - afirmou Tagart, com a cabeça
baixa e os olhos cheios de lágrimas.
-
Levante-se - ordenou Lara. - Você possui muita coragem em seu coração, jovem
legrado. E nesta terrível guerra que seu povo enfrenta você terá um muito importante.
O destino revelou-me que o conflito tomará rumos inesperados, e o pior ainda
está por vir. Nem o sábio mais audaz pode prever os acontecimentos que irão se
desencadear. Mas a sua força será capaz de derrotar os inimigos da vida dos
homens.
O anjo
fez uma pausa, aproximou-se do mensageiro e tocou gentilmente seu queixo, para olhar
diretamente nos olhos de Tagart, e então prosseguiu dizendo: - Eu estou aqui para
que perceba e acredite em seu valor.
Naquele
momento o jovem legrado sentiu seu coração aquecer-se. Seus pulmões encheram-se
de um ar perfumado e revigorante, e ele sentia como se estivesse flutuando no
interior dos hipnotizantes olhos amarelados da deusa. Foi como se toda a magia,
toda a beleza e poesia do mundo pudesse ser compreendida. Tagart sentiu como se
toda a existência, por um breve momento, fizesse sentido.
- Nas
planícies de Trada, será definido o futuro dos homens - disse Lara. - No
entanto, para decidir por todos vocês, só um será necessário.
- Mas
minha senhora, - protestou o jovem mensageiro, sentindo seus pés voltarem ao
chão e a realidade fazer-se presente de novo. - Eu não sou um guerreiro. Eu não
posso lutar em uma guerra.
- Tagard, - disse a mulher - você só precisa
confiar em seu valor, e na hora certa você fará isso. Lembre-se sempre de suas
pequenas conquistas, dos detalhes que realiza a cada dia e então irá
compreender. Você conhece alguém capaz de viajar pelas trilhas de Monfar sem ser
importunado pelos espíritos verdes? Você acredita que algum outro homem, mesmo
entre os Brenvos, conseguiria domar uma montaria como Uster?
Tagart
balançou a cabeça, confuso e pensativo, e acabou por responder: - Creio...
que... não, minha senhora. - No entanto, - prosseguiu o anjo. - você cruzou a
floresta, você é o único capaz de montar Uster. Existe algo de especial em você
e estou aqui como prova disso e como parte de uma jornada que terá que
enfrentar até o momento decisivo da guerra que se inicia.
Lara,
então, inclinou-se em direção ao mensageiro e deu-lhe um beijo na face. Tagart
fechou os olhos e quando os abriu a deusa da luz havia sumido. O único sinal de
sua presença eram as flores na grama onde ela pisara e uma confiança imensa no
peito do jovem legrado.