Conto: 4 - O Senhor do Destino

PREÂMBULO
Dos Deuses e da Criação do Mundo.

     No princípio só havia o Tempo, o Destino e Calon, que vagava sozinho no vazio gelado e escuro da imensidão. Foi então que, sentindo seu poder, num rápido movimento, Calon bateu palmas dando início ao que chamou universo. De repente, por entre seus dedos verteu algo cristalino e límpido que ele chamou água. E muita água ele criou, dando ao primeiro elemento um formato esférico. E o imenso globo flutuante que surgiu Calon chamou mundo.

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     Após a criação do mundo, muito tempo passou, e Calon ainda sentia seu poder inquieto, sentia que sua criação estava apenas começando e percebia que o Destino preparava algo maior. De súbito, então, labaredas arderam em suas mãos e as chamas do segundo elemento, que ele chamou fogo, foram colocadas no interior do mundo, fazendo logo as águas ondular e bolhas de gases e vapores formarem-se no centro daquela esfera aquosa, irrompendo, em seguida, até a superfície das águas. Aquelas exalações, na superfície, tornaram-se sólidas e vastas e quando a chama no interior do mundo pareceu extinguir-se, o terceiro elemento, que ele chamou terra, já cobria grande parte do mundo. Em meio às ondulações e explosões no seio do mundo, muita água ficou presa no interior da terra formando correntes que buscavam incessantemente a porção maior. As águas correntes, Calon chamou rios e as águas primordiais, oceano.
     Eis que assim terminou a primeira era.
     Após as transformações do mundo, que ocorreram sob a benção do Tempo, cessarem, Calon passou a caminhar pela terra e pelo oceano, sempre angustiado com seu poder e sentindo-se só. Tamanha era sua solidão que inúmeras vezes ele chorou e durante anos suas lágrimas caíram no oceano. Tantas foram elas que tornaram as águas primordiais salgadas e mais vastas. E foi em meio àquela tristeza que o poder de Calon mostrou-se mais uma vez. Então, numa praia distante, ao pé de um vulcão, onde os três elementos encontravam-se unidos, ele tomou nas mãos uma porção da terra e deixou-a ser moldada pelo fogo e pela água, dando origem, primeiro, a Devadon, para quem deu sua onipotência, em seguida a Valúnia, para quem deu sua sabedoria.
     Valúnia era muito bela e bondosa. Durante longo tempo ela viveu junto de seu senhor, mas sua obrigação era para com o terceiro elemento, e com o poder que recebeu quando fora criada ela deu origem à vida, tomando nas mãos a terra de onde surgira e soprando seus grãos sobre todo o mundo. Calon viu o que fora feito, viu aquele sopro envolver o mundo e o chamou ar, o quarto elemento. Os grãos da terra que caíram no mar foram transformados pelo poder de Devadon, tomando várias formas, e foram chamados peixes. Alguns outros continuaram flutuando nos ventos e deram origem ao que Valúnia chamou pássaros. Finalmente, os que voltaram à própria terra, originaram o que ela chamou de animais e plantas. Desses, alguns imitaram a forma de Devadon e de Valúnia, e foram chamados homens, e a eles ela deu seu amor e Calon sua imortalidade.
     Devadon era forte e determinado. Sua obrigação era para com o primeiro elemento, e com o poder que lhe foi concedido ele criou todas as criaturas do mar, e criou recifes de corais e abismos tão profundos quanto seu poder. Foi ele quem ensinou aos homens a arte da pesca e da navegação, e deu a eles as ondas brincalhonas da praia, as marés e o balanço sereno do alto mar. E desse modo comandou os mares segundo a vontade de Calon, bem como as águas mais distantes no interior da terra.
     Eis que assim terminou a segunda era.
     Com o passar dos anos Calon percebeu que os homens temiam a escuridão do vazio que circundava o mundo, foi então que seu poder mostrou-se novamente, e Calon voltou a vagar no vazio pela primeira vez, levando consigo uma fagulha do fogo que ainda ardia no seio da terra. Séculos ele passou na escuridão e os homens só sabiam dele através do brilho da chama que carregava, chamas que subitamente explodiram sobre o mundo fazendo surgir duas esferas ardentes e brilhantes em lados opostos do mundo, e o deus criador chamou as imensas esferas de sóis, e os raios que deles partiram ele chamou luz. O vento que cercava o mundo, atravessado pelos raios de luz, tornou-se azul, bem como o oceano, e Calon o chamou céu. No céu, com o passar do tempo, surgiram formas leves e brancas que flutuavam com o vento, estas Valúnia chamou nuvens. Mas o que de maior e mais extraordinário surgiu da luz das esferas de fogo, foi Lara, para quem Calon deu sua beleza, e Trondór, para quem deu sua força.
     Quando as luzes dos dois sóis encontraram-se sobre o mundo, em meio ao vazio, pela primeira vez, uma suave melodia soou, uma melodia que tinha a beleza de Valúnia, a força de Devadon e os ecos das palmas de Calon, que deram início ao universo. Desta sublime música nasceu Lara, aquela que os homens chamaram Deusa da Luz, e sua obrigação era para com o segundo elemento. Lara era alegre e exuberante, e apesar de sua morada ser na luz quente e brilhante dos sóis, ela também vagava pela terra naquele tempo, tendo um apreço especial pelas planícies e pelas cachoeiras e fontes onde admirava sua luz decomposta em cores.
     No momento em que o primeiro raio de luz atravessou o vento criado por Valúnia um estrondo, que Calon chamou de trovão, ecoou por todo o mundo, e deste vigor sonoro, ouvido em todo o universo, surgiu Trondór, cuja obrigação era para com o quarto elemento. E a ele os homens chamaram Deus das Tempestades. Trondór, irmão de Lara, era ágil e vigoroso, e como todos os outros deuses faziam naquele tempo, ele também andava pela terra em meio aos homens. Foi em uma de suas viagens pela terra, aliás, que ele encontrou e abençoou Célere, o cavalo dos ventos que lhe serviu de montaria.
     Eis que assim terminou a terceira era.
     A quarta era teve início com uma terrível guerra – A Partida dos Deuses – na qual as tribos humanas lutaram umas contra as outras por inveja e ganância. Com aquela guerra os homens criaram a discórdia e a ira, fazendo os deuses conhecerem a desgraça. Calon, quando retornou ao mundo, foi tomado pelo ódio, e tamanha foi sua fúria, que dos homens ele tomou sua imortalidade. O ódio, então, fez seu poder manifestar-se novamente, e da punição e da escuridão do vazio que os homens sempre temeram, ele criou Sargóz, para quem deu sua cólera. Os homens, naquele momento, conheceram a morte, e chamaram seu algoz de Deus da Escuridão.
     Sargóz era terrível e grandioso, sua obrigação era punir os homens com a morte, e amedrontar seus corações com o sofrimento e a dor. Para tanto, um grande poder foi-lhe concedido, e em seus olhos, desde o início, estava presente todo o rancor de Calon.
     A grande guerra entre as tribos dos homens e a criação de Sargóz fizeram surgir a desgraça entre os deuses. Valúnia e Lara foram as primeiras a deixar o mundo, quando o algoz dos homens feriu a vida e a luz com a permissão de Calon, deixando cicatrizes que nem o Tempo foi capaz de apagar. Trondór partiu em seguida, mas não antes de tentar reunir novamente os homens e impedir a guerra, com raios e trovões, ventos e tempestades, tudo em vão. Devadon, por fim, também partiu. Antes, porém, colocou seu lamento no som das ondas do mar, e sua melodia entristeceu Calon mais do que tudo, fazendo-o arrepender-se de seu ódio.
     Gerações de homens surgiram e morreram durante toda a quarta era, e com aquilo crescia o poder de Sargóz, que se tornou o único sobre o mundo quando Calon voltou a vagar no vazio pela segunda vez. Tamanho tornou-se o poder do Deus da Escuridão que em profundas cavernas da terra, aonde a luz jamais chegou, Sargóz criou muitos soldados para atormentar os homens, e os chamou de sombras, gigantes, licantropos e mortos-vivos, criaturas vis que para sempre se tornaram perigos para o mundo inteiro.
     Eis que assim terminou a quarta era.
     Enquanto vagava pela escuridão Calon via as almas dos homens, outrora imortais, deixarem o mundo e perderam-se no vazio do universo. Foi com aquela visão que seu poder voltou a manifestar-se e ele criou, em meio ao vazio, um lar para as almas, e o chamou limbo. E da pureza das almas humanas, que representam os aspectos eterno e divino dos homens, ele criou Eleia, para quem deu sua austeridade. Segundo os desígnios de Calon, ela devia comandar todo o limbo e cuidar das almas daqueles que perdiam a vida no mundo. Medeia era calma e severa, a única entre os deuses que jamais conheceu o mundo, e a quem os homens chamaram Deusa da Morte.
     Ao deixar o vazio, voltando ao mundo, perturbado e melancólico, Calon vagou por abismos e vales, por campos e montanhas, desertos, pântanos e densas florestas, acompanhado apenas pelo Tempo. Foi então, durante a angústia, que seu poder manifestou-se mais uma vez, e ele dormiu sob a sombra de um imenso carvalho, revelando, em sonhos, seus mistérios e desejos mais profundos. Tamanhos eram os segredos e a vontade de Calon que, com a força de seus sonhos, a grande árvore foi moldada por seu inconsciente dando origem a Fancór, para quem Calon deu sua obscuridade. Fancór era sereno e capcioso, e sua obrigação era para com os segredos de todo o universo. Pelos homens ele foi chamado de Deus dos Mistérios, e todos o respeitavam e temiam, por desconhecerem os motivos de sua criação.
     Fancór vagou pela terra criando plantas e criaturas tão estranhas quanto magníficas. Ele criou as dríades, as ninfas e as fadas, entre outros seres, tudo sem deixar sua morada, a vasta floresta de Monfar, a Terra das Vozes, como foi chamada pelos homens, a mais antiga das florestas do mundo, um lugar isolado, perigoso e repleto dos mais fantásticos mistérios.
     Eis que assim terminou a quinta era.
     Após o retorno de Calon ao mundo, uma grande angústia tomou conta de Sargóz e este percebeu que o Destino lhe reservava algo terrível. Sargóz, então, tramando permanecer sozinho no mundo e governá-lo com sua tirania, procurou Fancór, o senhor dos segredos, aquele que jamais deixou o mundo, e assim a escuridão e o mistério uniram-se contra Calon. E daquela luta resultou a partida dos últimos deuses.
     Sargós esperava que a batalha final, e o fim da guerra, ocorresse na planície de Trada, e lá ele reuniu todo seu poder com o intuito de destruir os maiores e mais fortes exércitos e tribos dos homens. Porém, Calon encontrou, entre estes, dois líderes capazes de enfrentar o medo e o terror impostos pelo Deus da Escuridão e seus exércitos. Foi então que, fomentado pela esperança, seu poder manifestou-se novamente, e assim surgiram Helcrandar e Tran, os abençoados. Para o primeiro Calon deu sua esperança, para o outro sua determinação.
     Helcrandar era leal e altivo, e foi chamado pelos homens de Deus da Justiça. Tran era valente e determinado, e foi chamado de Deus da Guerra. Dois grandes exércitos foram formados por aqueles homens, que com o toque divino de Calon tornaram-se poderosos como os deuses, e a força de Sargóz tornou-se pequena diante dos paladinos de Helcrandar e dos guerreiros de Tran.
     Os últimos Deuses, então, lutaram na planície de Trada expulsando Ságoz e derrotando seus exércitos. Naquela batalha o Deus da Escuridão foi vencido e ele e Fancór foram capturados por Tran. Contudo, o poder de Sargóz ainda era imenso, de modo que apenas Calon poderia derrotá-lo completamente.
     Após a Batalha de Trada, o prisioneiro de Tran foi levado à presença de seu criador e sentenciado por sua união de guerra. A ele Calon disse: “Tu Fancor, filho da angústia e do mistério, jamais habitarás entre os deuses. Tua criação e existência são, para teus iguais, incompreensíveis e perversas. E nem mesmo eu, teu senhor, considero-te digno de lealdade. Assim, condeno-te a vagar eternamente em tua morada, longe dos imortais e do poder divino!”. E subitamente o corpo de Fancór tornou-se desforme, translúcido, e em seguida uma fumaça esverdeada. Então, com um sopro, Calon o dissipou na brisa do dia. E lentamente o vento o levou em direção a Monfar, onde aquela nuvem de gás esverdeada espalhou-se por toda a floresta, como que abraçando cada árvore do lugar, e estas passaram a falar umas com as outras, e tornaram-se capazes de ganhar vida, pois o próprio Fancór habita cada uma delas.
     Mas de repente, do vazio ouviu-se um estrondo que ecoou por todo o universo, fazendo o mundo mover-se e girar, as marés elevarem-se, vulcões explodirem, a terra tremer e furacões soprarem. E então se ouviu a voz de Calon: “Tu não és digno de dominar o que eu criei, Sargóz, filho da escuridão e do castigo. Por isso te expulso do mundo que tanto quisestes dominar! E para que os homens lembrem-se para sempre de sua punição, os corpos de seus mortos irão vagar eternamente no vazio, como uma chama, e eles irão brilhar na escuridão para lembrá-los, de sua desgraça”. E o deus da escuridão foi mandado para um dos sóis e lá foi queimado pelo fogo de Lara, e aquele sol perdeu sua luz e definhou, e os homens em guerra viram um lado do mundo escurecer, e o escuro do mundo eles chamaram noite, e ao sol morto eles chamaram lua.
     Por fim, Calon deixou o mundo, para vagar no vazio, pela terceira vez, levando consigo os últimos deuses, Helcrandar e Tran. E toda sua criação foi deixada aos homens, os herdeiros do mundo.
     Eis que assim terminou a sexta era.