Entre as inúmeras atrações do evento de 2011, o fato que mais me chamou atenção ocorreu durante a palestras dos autores de Tormenta, Marcelo Cassaro, J.M.Trevisan, Rogério Saladino ficaram perplexos com a atitude do universitário Ângelo Trombini, que revelou ser um fã do RPG brasileiro (3D&T), afirmando que por ser disléxico, teve muitas dificuldades amenizadas pela prática desse jogo. Abaixo o pergaminho com a entrevista na íntegra, conseguida pelo colega Raphael Fernandes do blog Contraversão. É algo que, aos olhos de um velho RPGista como eu, professor de escola pública que possui alunos com esta e outras dificuldades, ficaria emocionado ao ponto de chegar as lágrimas. Boa leitura e VIVA O RPG!
>Como foi a sensação de encontrar aquelas pessoas que te ajudaram?
A verdade é que aquele dia fui só por causa do Marcelo Cassaro, queria encontrar o meu herói de infância e agradecer. Pra falar a verdade, não sabia como ele era fisicamente. Quando entrei lá e vi a galera da Tormenta falando, não sabia que tanta gente tinha feito o manual, mas fiquei emocionado por saber que um deles era o cara que me ajudou a superar meus problemas. Antes de falar, já estava com um nó na garganta só de lembrar tudo o que passei até ali. Tenho meus livros antigos e aqui na minha região as lojas de RPG foram extintas em 2005. Não sabia que tinha feito tantos livros de Tormenta e que eles tinham um site. Eu só tinha livros antigos: um Manual de 2003 (3ª Edição), dois livros de classe de 2004 e um UFO TEAM, achava que aqueles eram os últimos lançados. Desde 1999, eu jogo 3D&T da mesma forma e isso mostra a versatilidade que o RPG de Cassaro e equipe fizeram. Aquele foi meu primeiro evento de RPG e anime. Outra coisa que queria confidenciar é que quando me levantei, achei que iriam rir da minha cara e me preparei para isso. Quando me aplaudiram, eu só conseguia chorar de alegria. Comecei a chorar de emoção, porque quando era pequeno jurei que um dia iria encontrar o cara que fez o 3D&T e o Holy Avenger pra dar um abraço nele. Naquele momento, que chorei e abracei o Cassaro não era o Ângelo adulto com 20 anos, mas o Ângelo Gabrielzinho de 9 anos, gordinho e excluído, que encontrava no RPG uma escapatória das injustiças. Meus personagens favoritos sempre foram os paladinos de Khalmyr porque eu podia fazer a justiça contra aqueles que praticavam a injustiça aos mais fracos e diferentes. Nunca vou esquecer desse RPGCON.
>Como se manifesta sua dislexia e no que ela atrapalha sua vida?
Existem vários graus de dislexia. Ela é incurável, mas é tratável e vamos dizer adaptável. Geralmente, o dislexo sofre para escrever, interpretar números, tem hipo ou hiperatividade e outras coisas. No meu caso, eu sofria muito para ler em voz alta e soletrar, minha compreensão de texto era bem fraca e quando começava a ler as letras se moviam na minha frente. Algumas trocavam de posição e coisas do tipo. Nunca dava pra manter o foco na leitura. Minha professora de terceira e quarta série obrigava os alunos a lerem em voz alta, como uma espécie de chamada oral. Eu sempre ia mal. Porque, como não conseguia entender o meio, eu deduzia o que estava lendo baseado no começo e no fim da palavra. Era comum eu deduzir que “polícia” era “política” e coisas do tipo. Tinha que ler e reler para entender.
Também sou hiperativo, tenho déficit de atenção, discalculia (dificuldades com a Linguagem Matemática) e problemas para escrever. Minha mente pensa mais rápido que meus dedos para escrever com um lápis, por isso, prefiro digitar. Ainda assim tenho o velho problema de acentuação e apesar de ler, não consigo arrumar meus erros de gramática, pois pra mim não existem erros. O Word ajuda muito. Uma vantagem da dislexia é que a pessoa tem uma mente muito criativa e os professores acham que é normal ter aluno que vaga no mundo da lua, mas ele tem grande chance de ser dislexo. Geralmente, esse aluno é inteligente, mas vai sempre mal apesar de sua memória auditiva ser aguçada e ter QI acima da média (o meu é 110 e a media é 90). De cada quatro alunos em sala de aula, um é dislexo. No Brasil, não existe ensino diferenciado.
>Qual foi o seu primeiro contato com o RPG?
Meu primeiro contato com RPG foi aos 8 anos, na Páscoa, quando vi meus primos mais velhos jogando. Somos nove primos e estávamos sempre fazendo alguma coisa juntos, mas como eu era diferente acabava ficando de lado em muitas coisas. Fiquei observando eles jogarem alguma coisa com dados e um desenho em cartolina. Achei estranho e quando percebi que tinha que ler não me interessei. Na Páscoa de 1999, no ano seguinte, eles estavam jogando novamente, mas agora tinham um manual novo com lindos desenhos inclusive de um robô que me lembrava o “Winspector” (seriado de ação japonês). Perguntei o que era e eles me falaram que era o “Defensores de Tóquio”. Me chamaram pra jogar e eu topei na hora. Comecei a me esforçar para ler, meu primo Robson me ajudou na ficha e resumiu para mim as classes. Ninguém entendia ainda porque eu era tão lento pra ler e achavam que era preguiça (apesar de ser dislexo, na época, eu não sabia disso). Meu primo começou a narrar e era demais! Um mundo diferente da escola onde eu era piada e excluído, lá eu era um herói, um Defensor de Tóquio e, talvez um dia, poderia ser igual ao paladino que meu primo descrevia. Nunca vou esquecer que joguei 5 horas aquele dia que pareceram 5 minutos.
>De que forma ele te ajudou a superar suas limitações?
Deus usou o Cassaro para me ajudar e a muitos como eu. Acredito que também aos muitos dos que estavam ali naquele domingo do qual, emocionado, voltei a ser aquela criança de 9 anos que agradeceu de coração ao seu herói. Nem todos ali eram dislexos, mas todos ali usam o RPG como uma fuga, um lugar onde eles podem ser mais, onde ninguém pode limitar o voo deles.
No meu caso, como era mais novo e tinha 9 anos, comecei a jogar todo final de semana com meus primos. O problema é que, às vezes, eles roubavam sabendo que eu não contava bem e nem lia as vantagens da minha ficha. Percebi que meu personagem nunca ficava tão bom quanto o deles. Certo dia, pedi o manual emprestado para meu primo que era mestre e comecei a ler. Era difícil, pois tinha que ficar voltando o tempo todo para poder entender o que diziam e domar as letras que praticamente pulavam de lugar ou se invertiam. Comecei a me esforçar, vendo as ilustrações bem feitas que me inspiravam a continuar e comecei a me forçar muito pra ler. Finalmente, li a parte das regras e depois na outra sexta me juntei com meus primos para discute-las. Só faltava agora encarar aquele dragão das bolinhas dos dados e suas matemáticas de subtração. Para mim, subtrair, somar e comparar era terrível, mas eu precisava. Comecei a me esforçar e anotar as bolinhas do dado para somá-las a parte com meus dedos. Aos poucos, fui ficando mais rápido para ler e para somar e subtrair. Com meu esforço somado ao interesse pelo manual 3D&T, o RPG serviu como tratamento para vencer meu problema. Foi assim que comecei a ir melhor na escola e minha interpretação de texto melhorou muito. Vou deixar claro que só a pouco tempo descobri, pela internet, que isso não era normal. Achava que toda criança tinha os mesmos problemas que eu. Lembro que pesquisando esbarrei na dislexia e vi que os cinco sintomas se encaixavam perfeitamente. Conversei com minha mãe, feliz por ter descoberto o que tinha, que me disse já saber disso. A psicóloga que a escola indicou para minha mãe me mandou para um neurologista, que fez uns exames e comprovou. Minha mãe escondeu meu problema para eu não usá-lo como desculpa para não estudar e não me esforçava. É importante lembrar que outro primo, Leonardo, começou a comprar o Holy Avenger e me emprestou. Antes, não lia um gibi da Mônica e agora me esforçava para ler esse.
>Qual o curso você faz na faculdade e quais são seus objetivos e sonhos?
Atualmente, tenho 20 anos, faço faculdade de Relações Internacionais. Fiz um ano na PUC-SP, mas por motivos econômicos fui obrigado a me transferir de faculdade e estudo na Fundação Santo André. Como minha memória auditiva é aumentada graças a dislexia, aprendo línguas estrangeiras rapidamente: a pronuncia e o vocabulário são mais fáceis e depois aprendo a gramática. Meu objetivo maior é me formar e fazer um estágio para me especializar em segurança nacional ou representação de empresas. Aprendi que do mesmo jeito que Deus pode nos fazer diferentes e, às vezes, isso parece ruim para nós, mas ele também nos dá a capacidade de superar essas diferenças e mostrar aos outros que eles também são capazes.
>Você acha que o RPG deveria ser usado regularmente nas escolas?
Esse sempre foi o maior dos meus projetos: introduzir o RPG como matéria extra. Uma boa história narrada por professores de português, matemática e história poderia incentivar as crianças e facilitar o aprendizado. Sem contar que ao narrar uma história, o professor cria um elo de amizade e respeito mútuo entre ele e seus alunos. Sem falar que pode estar destacando alunos especiais com dislexia e outros problemas. Mas como disse, deve ser opcional. O aluno escolhe se quer ficar mais 2 horas a mais na escola para essa matéria, pois não adianta forçar o aluno ou ele pega ódio disso.
>Quer deixar algum recado?
Não importa se você é gordo, magro, feio, vesgo, dislexo ou qualquer outro detalhe diferente dos que se dizem normais. Você pode superar isso e usar sua força de vontade para ajudar outros como você. O RPG funcionou para mim como uma válvula de escape e de incentivo, mas poderia ser qualquer outra coisa. Da mesma forma que Deus me deu a dislexia, como também pode ter dado a cegueira ao cego, ele também me deu uma memória auditiva poderosa e um QI acima da média, como os sentidos aguçados de um deficiente visual. Não importa o que aconteça, sempre há uma escolha simples: ficar parado se lamentando ou lutar para ser algo melhor. Eu escolhi lutar e vou continuar lutando o resto da minha vida e quem sabe um dia não chegue a ser um Paladino como Cassaro ou ter tantos pontos de atributo como o Talude.
Passei por coisas muito parecidas na infância por causa de uma série de problemas pessoais e encontrei nos quadrinhos, RPG e música esse mesmo norte. Fiquei bastante emocionado ao ler essa entrevista e decidi publicar na íntegra para que todos que passaram, ou ainda passam, por situações semelhantes possam ver que não estão sozinhos.