Conto: 4 - O Senhor do destino

CAPÍTULO 1

O Anjo de Trada.

   Um som abafado do trote veloz e determinado de Uster cortava o silêncio de Monfar. As folhas secas estalavam e esvoaçavam sob as poderosas patas do belo cavalo que cruzava as temidas trilhas da floresta como o vento, conduzindo seu senhor rumo às terras do sul. O jovem Tagart deveria entregar uma importante mensagem em Serena, a cidade alva, e esperava diminuir o tempo de viagem em dois dias, atalhando pela floresta. A Terra das Vozes, como chamavam a velha Monfar, era muito antiga e perigosa, talvez o segundo local mais perigoso de todo o reino de Grênazar, mas o mensageiro precisava chegar rápido, o mais rápido possível, mesmo que precisasse mergulhar na densa neblina da velha floresta e arriscar descobrir seus segredos.

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   E como o rapaz previu, quando as estrelas já brilhavam claras no céu limpo na noite do mesmo dia em que partira, Uster deixou para trás as últimas árvores de Monfar e Tagart pôde ver as poucas casas de Taruli, a primeira aldeia da planície de Trada, na borda sul da Terra das Vozes, ainda iluminadas pelo crepúsculo.

   O pequeno vilarejo de Taruli era domínio dos Brenvos, o clã dos homens que dominavam toda a região central, de leste a oeste, do reino de Grênazar. Porém, Targart ainda não tinha terminado sua viagem. De Taruli ele deveria seguir até a cidade de Serena, onde vivia Ecárion, o Senhor de todos os Brenvos. Então, sem muito descanso, o mensageiro continuou seu caminho e cavalgou por mais duas horas até a cidade branca dos Brenvos.

   Tagart era um Legrado, como eram chamados os homens que viviam ao norte de Monfar, a leste da Cordilheira Cortante. Ele tinha ordens de entregar uma mensagem para Ecárion em pessoa, e para mais ninguém. No entanto não fazia ideia de como eram os costumes dos Brenvos. Os humildes Senhores Legrados apenas comentavam que seus vizinhos mais próximos ao sul tinham hábitos muito elegantes, grandes conhecimentos místicos e que eram os melhores cavaleiros de todos os quatro reinos. E aquilo era tudo que Tagart conhecia dos Brenvos.

   Tomando a estrada sudeste, Uster continuou, incansável, levando seu senhor até Serena. E antes de entrar na cidade Tagart parou por alguns minutos para apreciar um grande castelo, exatamente no centro da cidade, de pedras brancas que refletiam o luar em suas paredes, muros e torres. Era a morada dos Brenvos, a construção mais antiga de todo o reino. O castelo parecia uma pérola em meio ao resto da cidade que se escondia sob as primeiras sombras da noite. Após seu pequeno momento de contemplação, Tagart, então, cruzou as ruas da cidade e logo chegou aos portões do castelo, onde foi barrado por seis guardas.

   - Boa noite senhores - disse o jovem legrado, enquanto se aproximava.

   - Boa noite meu jovem. O que deseja por aqui? Em que podemos ajudar? - disse um dos guardas, que vestia uma cota de armas preta com contornos dourados e, bordado no peito, a figura de um escudo com a cabeça de um leão no centro. Tagart imaginou que o guarda deveria ser o superior entre os soldados ali, devido a sua vestimenta distinta.

   - Desejo uma audiência com seu senhor. Eu me chamo Tagart, venho de Chopar e trago uma mensagem urgente em nome de Milarco, o Sábio. Tenho ordens de entregá-la apenas para Ecárion, e o mais rápido possível – respondeu o mensageiro, tentando aparentar autoridade e segurança.

   O guarda pareceu confuso, cochichou alguma coisa com seus companheiros e disse em seguida, dirigindo-se a Tagart: - Fique aqui! Verei se nosso senhor vai recebê-lo. Ele está à espera de mensagens de Milarco, mas não antes de pelo menos dois dias - comentou o soldado.

   Tagart, na companhia dos outros guardas, perguntou onde ficavam os Campos de Ouro das Margens de Lim. As planícies do território brenvos eram famosas por sua beleza, e Tagart prometeu a si mesmo, quando aceitou a missão de Milarco, que aproveitaria sua viagem para conhecer a Planície de Trada, que era o coração do território dos Brenvos. Muitos dos sábios de Arla, e viajantes do estremo sul do reino, que hora passavam por Chopar, conheciam as planícies ao sul de Monfar e contavam histórias fabulosas sobre as muitas maravilhas daquele lugar. As histórias sempre despertaram a curiosidade de Tagart, que naquele momento teria uma chance de conhecer Trada.

   - Ecárion vai atendê-lo - disse o soldado ao retornar. - Siga-me, vou levá-lo até a sala de reuniões. Ele está reunido com nossos conselheiros. - E assim o mensageiro foi conduzido pelo interior do castelo. Já no salão de entrada, Tagart deslumbrou-se com a beleza do lugar. A sala era repleta de quadros espalhados por todas paredes, pinturas de paisagens, batalhas, monstros míticos e famílias importantes. Havia estátuas de mármore e ouro espalhadas pelos cantos e junto aos marcos das portas, e incontáveis vasos de flores adornados por pedras preciosas sobre pedestais, mesas e balcões por toda a parte, tudo iluminado por centenas de velas e tochas cuidadosamente acomodadas. O piso era colorido em tons de vermelho, marrom, laranja e caramelo, dispostos em intrincadas figuras geométricas que pareciam ondular e elevar-se do chão. As paredes eram todas brancas, como no exterior, e refletiam as luzes amareladas das velas e tochas, dando ao lugar um brilho acolhedor. Tagart já ouvira falar da riqueza dos Brenvos, mas nunca imaginou que a verdade seria mais magnífica que sua imaginação.

   Depois de passar pelo salão de entrada o jovem foi levado até o segundo andar subindo uma imensa escada com o corrimão trabalhado em ouro e prata, imitando as folhas e galhos de videiras. Em seguida o guarda tomou um corredor à esquerda e eles chegaram a uma grande porta dupla entre aberta. Ao entrar e ser anunciado pelo soldado Tagart viu vários homens sentados ao longo uma grande mesa em frente a uma lareira. A sala, apesar de ampla e alta, parecia pequena para acomodar aquela mesa tão grande, e estava preenchida pelo cheiro forte de fumaça e vinho. Durante o anúncio que o guarda fez, - Diante dos senhores trago Tagart, mensageiro dos Legrados, que traz notícias em nome de Milarco, o Sábio - os homens ali presentes discutiam ferozmente, e falavam todos ao mesmo tempo, parecendo não se importar com o soldado ou com Tagart. Após ser pronunciado o nome de Milarco, no entanto, fez-se um silencio sepulcral e então um sujeito alto e forte, com cerca de cinquenta anos, com cabelos claros, barba bem aparada e olhos negros que brilhavam sob grossas sobrancelhas grisalhas, levantou-se dizendo: - Eu sou Ecárion, Senhor dos Brenvos e governante de Serena. Então... Que notícias traz de Chopar, jovem mensageiro?

   - Bem senhor, meu nome é Tagart e trago esta mensagem em nome de Milarco - enunciou o rapaz enquanto retirava do manto um rolo de pergaminho e o estendia ao alcance de Ecárion.

   - Muito obrigado rapaz - disse o homem, dirigindo-se de volta ao seu lugar no centro da grande mesa. - Eu e meus conselheiros analisaremos as informações e enviaremos uma resposta a Milarco logo pela manhã. Vá descansar agora. Rácaro, providencie acomodações para o jovem legrado.

   Tagart já era levado pelo guarda quando Ecárion virou-se e disse: - Antes de ir, me diga, quando você partiu de Chopar?

   - Bem senhor, foi hoje cedo, antes de clarear o dia - respondeu o mensageiro.

   - Mas isto é impossível. Levam três dias, dois para o melhor cavalo e o melhor cavaleiro que conheço, para chegar até aqui. Mesmo que atravessasse a floresta levaria pelo menos um dia e meio - disse Ecárion, intrigado.

   - Bem meu senhor, - proferiu Tagart com cautela - realmente eu cruzei a floresta e tenho o melhor cavalo, Uster é muito veloz e parece não se importar com as vozes da floresta. Só não posso oferecer garantia quanto a ser um bom cavaleiro.

   Naquele momento os demais homens na sala, que acompanhavam em silêncio o diálogo, levantaram e aproximaram-se de Tagart e Ecárion, perguntado, quase em uníssono: - Mas e os espíritos? E os espíritos verdes?

   - Eu já ouvi muitas histórias sobre eles, mas nunca vi nenhum - afirmou Tagart, tentando esconder certa malícia no olhar. Ele imaginava homens adultos do povo dos Brenvos, e que deveriam ser os conselheiros de Ecárion, não acreditassem realmente em lendas antigas sobre Monfar, tampouco mitos usados para assustar crianças malcriadas.

   - Não seja tolo rapaz! - Exclamou um dos homens. – Se houvesse visto estaria morto, não aqui, entregando mensagens.

   - A única forma de entrar na terra das vozes é com uma montaria muito especial - afirmou outro dos conselheiros. - Diga jovem, seu cavalo possui algum tipo de marca, algum sinal em sua pelagem?

   Naquele momento Ecárion interrompeu a conversa falando: - Chega de histórias de ninar. Temos muito trabalho seus velhos senis. Deixem o rapaz descansar e tratemos de assuntos mais sérios do que sombras verdes e vozes de árvores sussurrando durante as noites do norte.

   - Eu gostaria senhor, se permitir, de caminhar um pouco pela planície de Trada, antes de me recolher - disse Tagart. - Há muito tempo sonho em conhecer as terras de seu povo.

   - É verdade?! - perguntou Ecárion. - Então tem minha permissão para andar nas proximidades do castelo. E se quiser mesmo conhecer a planície, peça a Rácaro que leve você até o portão sul. Ele leva até um pequeno túnel que passa sob toda a cidade e conduz a um córrego muito sossegado fora dos limites da cidade.

   - Obrigado senhor - afirmou Tagart enquanto se retirava.

   Rácaro e o mensageiro deixaram o castelo e dirigiram-se ao portão sul. A lua cheia derramava sobre o pátio do castelo uma luz clara como a de um dia nublado, e não foi difícil encontrar o túnel que Ecárion mencionara, na entrada do qual o guarda o deixou. Por pelo menos meia hora o mensageiro se esgueirou por uma passagem estreita de teto baixo, cheia de teias de aranha e fedendo a mofo, para enfim chegar a um campo aberto, bastante afastado das últimas casas da cidade, coberto por uma vegetação baixa que parecia saída de um sonho fantasmagórico graças ao tom prateado da luz da lua sobre a grama verde. Alguns metros a frente da saída do túnel, corria um riacho estreito de vagarosa correnteza, que o brilho da lua na água fazia parecer um longo colar de diamantes, deslizando pela planície. Tagart espantou-se com a beleza capturada por seus olhos. As planícies de Trada eram tão belas quanto ele imaginara. Aquele vasto campo verde acinzentado parecia algo mágico saído dos contos e lendas antigas. O ar fresco soprando uma brisa suave encheu os pulmões do mensageiro com um tipo de encanto, quase como se tivesse dormido por toda uma noite, fazendo seu corpo parecer leve e descansado. E o barulho calmo da água correndo no riacho tocava uma melodia divina.

   Tagart se aproximou do riacho e notou que junto à margem, rodeada de pequenas flores amarelas, repousava uma grande pedra escura. Ele recostou-se para descansar numa face lisa da rocha e durante alguns minutos o mensageiro apreciou o céu estrelado e deixou de pensar na guerra que ocorria em sua cidade. Ele poderia ficar ali, descansando, para sempre, sem pensar em batalhas, mortes e perversidades. Porém, de repente, a tranquilidade que ele experimentava desapareceu. Alguns metros a seu lado, sobre o riacho, Tagart viu um pequeno brilho surgir no ar, como se uma fenda se abrisse no manto escuro da noite, deixando passar a luz de um dia persistente. O mensageiro ficou tão surpreso e assustado que não conseguiu mover um dedo sequer. Então, do interior daquele brilho, mais intenso que a luz da lua, Tagart vislumbrou a silhueta de uma mulher que em seguida, lentamente, tomou forma e saiu do interior da luz.

   - Não tenha medo Tagart – disse a mulher, com a voz mais bela e doce que o jovem já ouvira em toda sua vida.

   - Eu não posso acreditar! - exclamou o mensageiro. - Você é o anjo de Trada!? A senhora da luz!? A senhora de Trada e de todas as planícies!? Nem mesmo em meu sonho mais grandioso imaginei que você seria tão bela. - E naquele momento o jovem curvou-se diante da mulher, fazendo uma longa e cuidadosa reverência.

   A deusa da luz tinha a aparência de uma mulher jovem, usava um vestido leve de seda branca, com alças estreitas em torno do pescoço e com a saia na altura dos joelhos. Em sua cabeça descansava uma tiara de flores do campo, com o símbolo da luz entalhado em madeira em sua fronte e seus cabelos pendiam de sua testa em cachos dourados como o mais puro ouro. De suas costas saiam longas asas brancas de plumas, delicadas como pétalas de rosa, e uma longa trança prendia seus cabelos compridos que iam até sua cintura. Seus delicados pés pisavam a relva, descalços, e onde tocavam o chão surgiam pequeninas flores coloridas.

   - Sim Tagard. Eu sou a Senhora de Trada - respondeu ela. - Lara é o meu nome. Eu sou a Deusa da luz e das planícies, filha de Valúnia, a quem os Brenvos chamam de anjo em suas histórias.

   - Obrigado minha senhora. É a maior de todas as dádivas ter sua presença diante de mim em seu santuário. Nunca poderia imaginar que minha visita às planícies de Trada seria abençoada com a visão da mais bela das deusas - afirmou Tagart, com a cabeça baixa e os olhos cheios de lágrimas.

   - Levante-se - ordenou Lara. - Você possui muita coragem em seu coração, jovem legrado. E nesta terrível guerra que seu povo enfrenta você terá um muito importante. O destino revelou-me que o conflito tomará rumos inesperados, e o pior ainda está por vir. Nem o sábio mais audaz pode prever os acontecimentos que irão se desencadear. Mas a sua força será capaz de derrotar os inimigos da vida dos homens.

   O anjo fez uma pausa, aproximou-se do mensageiro e tocou gentilmente seu queixo, para olhar diretamente nos olhos de Tagart, e então prosseguiu dizendo: - Eu estou aqui para que perceba e acredite em seu valor.

   Naquele momento o jovem legrado sentiu seu coração aquecer-se. Seus pulmões encheram-se de um ar perfumado e revigorante, e ele sentia como se estivesse flutuando no interior dos hipnotizantes olhos amarelados da deusa. Foi como se toda a magia, toda a beleza e poesia do mundo pudesse ser compreendida. Tagart sentiu como se toda a existência, por um breve momento, fizesse sentido.

   - Nas planícies de Trada, será definido o futuro dos homens - disse Lara. - No entanto, para decidir por todos vocês, só um será necessário.

   - Mas minha senhora, - protestou o jovem mensageiro, sentindo seus pés voltarem ao chão e a realidade fazer-se presente de novo. - Eu não sou um guerreiro. Eu não posso lutar em uma guerra.

   - Tagard, - disse a mulher - você só precisa confiar em seu valor, e na hora certa você fará isso. Lembre-se sempre de suas pequenas conquistas, dos detalhes que realiza a cada dia e então irá compreender. Você conhece alguém capaz de viajar pelas trilhas de Monfar sem ser importunado pelos espíritos verdes? Você acredita que algum outro homem, mesmo entre os Brenvos, conseguiria domar uma montaria como Uster?

   Tagart balançou a cabeça, confuso e pensativo, e acabou por responder: - Creio... que... não, minha senhora. - No entanto, - prosseguiu o anjo. - você cruzou a floresta, você é o único capaz de montar Uster. Existe algo de especial em você e estou aqui como prova disso e como parte de uma jornada que terá que enfrentar até o momento decisivo da guerra que se inicia.

   Lara, então, inclinou-se em direção ao mensageiro e deu-lhe um beijo na face. Tagart fechou os olhos e quando os abriu a deusa da luz havia sumido. O único sinal de sua presença eram as flores na grama onde ela pisara e uma confiança imensa no peito do jovem legrado.